Globalização, pandemia e sustentabilidade: o que isso tem a ver com a atual crise?

A crise do atual sistema econômico aponta que o sistema existente tinha seus dias contados, de acordo com especialistas. Em outras palavras, a crise provocada pelo Coronavírus apenas expôs a vulnerabilidade que sempre existiu no sistema econômico imposto pela globalização. Hoje vamos abordar a atual crise através de dois pontos de vista: do economista alemão Niko Paech e do jornalista brasileiro Andre Motta Araújo.

 

Paech, uma das principais vozes da recentemente discutida economia de pós-crescimento, baseada numa estrutura de abastecimento estável e sustentável, fala sobre as vantagens do modelo que defende, sua importância diante das mudanças climáticas e como ele poderia ser aplicado no Brasil. Já Araújo fala sobre a dependência do mercado chinês, causada pela globalização, e suas consequências para a economia nesse período de pandemia.

Onde tudo começou...

Andre Motta Araújo defende que a doutrina econômica que tornou o Ocidente dependente da China foi o chamado Neoliberalismo, por criar uma comparação entre mercado e a noção de que o mundo deveria globalizar suas cadeias industriais para obter produtos onde fossem mais baratos. Tudo isso sem considerar segurança ou geopolítica, apenas a vantagem econômica.

Esse Neoliberalismo tornou o mundo praticamente “refém da China”, pois toda a produção eletrônica, automobilística, farmacêutica, de equipamentos para saúde, entre outros setores, de países como EUA, Brasil, México Argentina e parte da União Europeia, depende de insumos vindos da China, devido aos preços mais baixos. Essa “cadeia produtiva global” acabou provocando a desindustrialização de diversos países ocidentais, pois as grandes corporações multinacionais passaram a ser supridas quase que exclusivamente pela China, em tudo aquilo que a mesma podia produzir com menores preços.

De acordo com as palavras de Andre Motta Araújo, “a conta veio rápido”, pois, diante da pandemia do novo Coronavírus, o mundo ocidental se viu dependente da China para itens básicos de saúde, como máscaras, aventais e, até equipamentos mais complexos, como respiradores. E não apenas na questão da saúde, mas também componentes para a indústria de alta tecnologia, vestuário, calçados, entre outros setores dos países ocidentais se veem dependentes da China. Tudo isso devido à loucura neoliberal de buscar o custo mais baixo a curto prazo e deixar a conta final alta para o longo prazo.

“A loucura neoliberal economiza no curto prazo, mas cobra alto no longo prazo.”

Já no ponto de vista de Niko Paech, a instabilidade das redes econômicas globais já era um fato previsível, pois quanto mais complexos e extensos geograficamente os entrelaçamentos e cadeias de logística são, mais vulnerável a crises é o sistema como um todo. Num mundo onde tudo é ligado com tudo e tudo depende de tudo, não só bens e pessoas se locomovem mais rápido e se propagam, mas também todas as adversidades, inclusive um vírus.

Paech dá o exemplo da escassez de equipamentos médicos em meio à crise do Coronavírus como indicador de um ponto fraco de um modelo de produção que se baseia numa cadeia produtiva globalizada: “quando não há crise, ele é vantajoso por reduzir os custos, mas quando um elemento desta rede em algum lugar falha, ele desmorona”. Em outras palavras, a vulnerabilidade do sistema econômico foi exposta pela atual crise, pois revelou que o atual modelo de produção se baseia em dividir a produção de todos os bens em vários processos únicos altamente especializados, que são deslocados pelo mundo inteiro conforme a comparação dos custos. 

Qual a lição que podemos tirar dessa pandemia?!

As consequências dessa crise ensinarão a políticos e empresários que não é suficiente levar em conta eficiência e custos: é extremamente necessário pensar em segurança e resistência a crises. Os países precisam se encarregar de, pelo menos, uma parte da produção, a fim de serem capazes de produzir os bens necessários para a vida quando há uma crise econômica ou pandemia.

Segundo Paech, a atual situação resultará em duas chances: o medo da próxima crise, que pode gerar lacunas no abastecimento ou paralisação da economia, tornando a política econômica mais disposta a incentivar uma produção regional, em busca de estabilidade; e, por outro lado, a sociedade também deverá aprender a viver de uma forma mais “modesta” e com direito ao descanso. A “geração do stress e da ansiedade” foi forçada a uma “pausa obrigatória” não desejada, que mostrou para muitos que é bom não trabalhar 40 horas por semana. Pode ser que, depois da crise do coronavírus, cresça a disposição de viver uma vida sustentável, modesta, com menos viagens e consumo e mais tempo para amigos e vizinhos.

"Pode ser que, depois da crise do coronavírus, cresça a disposição de viver uma vida sustentável, modesta, com menos viagens e consumo e mais tempo para amigos e vizinhos"

Paech salienta que o atual modelo econômico, baseado em crescimento, não é sustentável, principalmente porque se tornou impossível de sustentar ambientalmente o modelo de bem-estar. O economista citou a construção de hidrelétricas e consequente destruição da paisagem no Brasil como um exemplo dentre os danos irreversíveis extremos causados pelo sistema. A natureza está sendo destruída para supostamente produzir uma energia limpa, o que é, no mínimo, uma incoerência, a transformação de um problema em outro problema. A consequência não é menos “incoerente”, na medida  em que se torna necessário o desmantelamento da economia para aliviar o meio-ambiente

 

E o Brasil foi um dos grandes exemplos da loucura neoliberal, de acordo com Araújo. Um exemplo foi no setor de óleo e gás, que cancelou a compra de navios e sondas de estaleiros brasileiros e preferiu negócios com a China, devido aos preços mais baixos. Esses cancelamento custou bilhões de dólares para os negócios brasileiros. Além disso, praticamente todos os estaleiros navais foram fechados no país, resultando na perda de 400 mil empregos diretos e indiretos, além de muitos outros serviços, que foram deslocados para a China. Nas palavras de Araújo, “a indústria naval brasileira foi liquidada pelo neoliberalismo ensandecido”, em nome da lógica das “cadeias produtivas globais”, o que gerou zonas de estagnação no país. “A conta veio com o Coronavírus e será alta”.

E qual seria a resposta à atual pandemia?!

Paech defende a necessidade de desenvolvimento um novo modelo econômico: mais sustentável, de produção menor e regionalizada, com mais respeito ao meio ambiente e mais tempo livre, que seria mais seguro e também mais estável diante de crises como essa.

A sugestão é desmantelar a sociedade industrial globalizada entrelaçada, não completamente, mas suficiente para que, mesmo com uma produção menor, tenha-se um bom abastecimento. Por exemplo, ao reduzir-se em dois terços a produção de automóveis no mundo, perderia-se empregos e haveria menos carros. O primeiro problema poderia ser solucionado reduzindo a jornada de trabalho de 40 horas semanais para 20 horas. Assim, mesmo com um encolhimento da economia, todos teriam emprego. O segundo problema podemos solucionar andando menos de carro, ao usar o transporte público ou dividir um automóvel com outras pessoas. A renda das pessoas também cairia, porém, ao não precisar mais pagar sozinho os custos de um carro, por exemplo, por estar dividindo com os vizinhos, o indivíduo precisa de menos dinheiro para viver. Ao dividir, além do carro, a máquina de lavar, o cortador de grama, a furadeira e outros objetos, economizaria ainda mais dinheiro e, quanto mais dinheiro a pessoa economiza, menos ela precisa trabalhar e, consequentemente, menor pode ser a economia.

Além disso, com uma jornada de apenas 20 horas semanais, as pessoas teriam mais tempo livre, tornando possível uma vida muito mais criativa e social, dedicando essas horas para produzir, sozinho ou em comunidade, coisas e alimentos, para consertar objetos ou ainda para organizar o uso comum. Essa é a lógica dos “prosumidores”, ou seja, não somos mais apenas consumidores, mas também produtores.

 

Aplicando-se ao Brasil, esse modelo econômico de pós-crescimento seria viável em cidades do Brasil começar a promover a produção em pequenas fábricas locais, o trabalho manual, a economia sustentável e sobretudo o cultivo ecológico, e assim possibilitar uma economia mais modesta, mas mais estável e autônoma. Uma economia que se orienta fortemente nas necessidades e não na cobiça é sustentável, além de integrar a todos. Esse modelo seria mais justo, pois a desigualdade é um produto da economia de consumo e do sistema financeiro. Numa sociedade de consumo, cada um pode acumular bens e dinheiro à vontade, mas numa sociedade na qual o trabalho manual e as relações sociais são o decisivo, por exemplo, quando divido algo com meu vizinho ou junto consertamos algo ou plantamos alimentos numa pequena área, nossas diferenças não podem ser tão grandes. A igualdade entre as pessoas numa economia de pós-crescimento é mais provável do que numa sociedade de consumo.

E na prática?

Utópica ou não, essa proposta mostra o quanto necessitamos de mudanças no atual modelo econômico para alcançar uma situação mais sustentável e estável em meio a adversidades, como uma pandemia ou crise global. 

De qualquer forma, ambos os especialistas concordam que os países precisam de economistas com visão de futuro e, principalmente, visão de país, não apenas da bolsa da próxima semana, como demonstra ser o pensamento dos neoliberais.

 

Você e/ou a sua empresa estão prontos para viver de forma mais “modesta” e sustentável?

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